Compartimentos

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Uma carta.

          Ando sobre a noite. Exatamente, sobre a noite. Grande noite escura e negra que estende-se aos meus pés, não reclama de estar pisando em cima dela, até gosta. Ri em silêncio e me delicio com o toque descalço na textura do entardecer. Noite comprida que não tem fim, iluminada por estrelas penduradas em postes. Estrelas estas que no vento gelado se esticam em fios camuflados e se esquentam compartilhando calor. Grandes montanhas quadradas nascem do céu de cimento, umas mais altas que as outras, me observam com seus milhares de olhos, uns atentos outros dormentes. Caminho sobre a noite, pés descalços sentem o frio que ela proporciona, mas um calor interno que aquece o coração. Grande mãe-noite sinto saudades suas, a tempos não me vem visitar e me faz falta. Sei que é ocupada, mas venhas logo que possível, quero poder deitar no teu abraço mais uma vez e dormir abraçada pela sua escuridão.
                                                                    De sua filha que sente saudades.
                                                                                                       Barbara

Uma história.

Vou te contar um história. Você gosta de histórias? História de um menina que não sabia quem era, não sabia aonde ia, não sabia da onde vinha, não sabia pra que servia, não sabia de nada, só sabia da Arte. Desde pequena tinha todas as respostas da arte cravadas em seu coração. Era um amor incondicional que a fazia cada vez mais feliz. Menina pobre, nasceu nas favelas e não tinha dinheiro para expandir a arte que sentia em seu coração. Muitos desistiriam, cansariam de tentar e tentar sem conseguir, mas ela não. Ela estava destinada a mostrar ao mundo a sua Arte, a sua vida, para todos aqueles que gostariam de conhecer. Cresceu, e, já moça, decidiu abandonar sua casa em busca da Arte. Seguiu pelos caminhos que a guiavam e vivia cada dia com uma surpresa. Não estudou, não trabalhou, e era ainda assim, muito culta e esforçada. Viveu nas ruas, alimentando-se de esmolas que tacavam-lhe na cara. Era mulher bonita, mas a pobreza a deixava suja e feia. Quando adulta, não desistiu da Arte e continuava a mostrar como podia para o mundo. Construiu sua própria flauta e saia tocando pelas ruas, quando achava papel e lápis desenhava, quando tocavam música dançava e vivia assim muito feliz. Aos 40 anos morreu de fome em uma rua desconhecida, sozinha, esquecida pelo mundo. Essa mulher não foi famosa, nem conhecida. Não sei quem era nem quem foi. Não teve final feliz como muitos outros que rodam pelo mundo com seus sonhos. Nos olhos humanos, apenas mais uma mulher pobre a morrer na rua. Nos olhos de um ET, uma mulher única que levou a sua arte até os céus.

domingo, 1 de novembro de 2009

Ciclo

Sou porque penso. Penso porque acredito. Acredito porque vejo. Vejo por quero. Quero porque posso. Posso porque me deram liberdade. Me deram liberdade porque eu faço. Faço porque tenho como. Tenho como porque consegui. Consegui porque errei. Errei porque tentei. Tentei porque deu vontade. Deu vontade porque tive a ideia. Tive a ideia porque a colocaram lá dentro. A colocaram lá dentro porque eu abri. Eu abri porque tinha a chave. Eu tinha a chave porque a criei. A criei porque tenho imaginação. Tenho imaginação porque faço teatro. Faço teatro porque o descobri. O descobri porque procurei. Procurei porque quis procurar. Quis procurar porque pensei assim. Pensei assim porque sou. Sou porque penso. Um ciclo que nunca acaba. Um ciclo que me completa.

Ser humano.

É difícil ser humano. É uma das tarefas que está sendo mais difícil pra mim em toda a minha existência. Tem que ter tantas mentiras, farsas, máscaras que eu fico até confusa! E quando decido falar a verdade, as pessoas consideram mentira. Humanos tem dessas de achar que qualquer coisa é mentira. Pois é, se não falassem todos tantas mentiras não teriam que ter essa desconfiança toda. Não gosto de me fingir humana. De fingir que tenho os mesmos pensamentos, mesmos sentimentos, mesmos comportamentos, e mesmos outros entos. Não posso ser eu mesma uma vez na vida? Não posso decidir que não quero saber de dinheiro, que quero direito pra todos? Que quero uma liberdade real e não falsa? Não posso gritar ao mundo que é a Arte que faz a alma? Não posso ao menos gritar? Não posso desenhar no asfalto, cantar bem alto, dar um salto? Não posso brincar de ciranda, imitar um panda, ir na varanda? Humanos estranhos que dizem que todos são diferentes e obrigam todos a serem iguais. Não sou nem nunca serei igual a ninguém. Sou diferente, de trás pra frente, sou louca, sou demente. Tenho manhas e manias, tenho aranhas e alegrias. Não sou assim e nem assado, sou apenas um ET desastrado que olha o mundo com seu olhar infantil.

Sonho quer voar.

  Pequeno pedaço de sonho quer aprender a voar. Na sua primeira tentativa acaba caindo em lugar desconhecido e corre. Chega em um lugar estranho onde pequenas montanhas coloridas de tecido subiam e desciam abundantemente. Estranhas árvores de cimento branco fechavam o quarto em quatro paredes altíssimas. Pobre Sonho, corria rápido pela madeira do chão enquanto quatro monstros horríveis se aproximavam. A montanha mais alta era presa ao chão por quatro pés e um vão abria-se embaixo dela, ficar ali parecia ser seguro.
  Quando acordei assustada pela música que tocara no aparelho, estranhei o movimento de gatos pelo meu quarto, apontavam todos seus focinhos e patas para minha cama e resolvi dar uma olhada. Um pequeno passarinho me olhava assustado com olhos arregalados de terror. Estiquei a mão na vaga tentativa de aconchega-lo. Era cedo e fazia frio e meu coração desejava com todas as forças cuidar daquele Sonho indefeso. Quando consegui segura-lo nas mãos piou alto e agudo como se chamasse sua mãe em desespero. Me apressei em deixa-lo confortavel e ele logo se acalmou. Segui em direção a arvore do jardim onde eu acreditava que estaria seu lar. Não estava. Ainda calma rodeei o jardim e não encontrei nem ninho nem outro passarinho que pudesse me dar algumas informações. Parei e olhei a bola de penas que dormia tranquilamente em minhas mãos. Derreti. Como poderia não me apaixonar por um pequeno sonho ao meu alcance? Não tive mais nenhum ideia do que fazer e fiquei apenas a apreciar aquele Sonho. Foi quando ouvi um som. Olhei em volta e em cima do muro havia um pássaro igual ao Sonho, só que em proporção maior. "Deve ser mamãe" falei baixinho na orelha do pequeno passarinho. Ele, continuou dormindo, parecia gostar daquele calor extraterrestre que minhas mãos lhe proporcionavam. Corri em direção a mãe dele, mas ela não gostava de minha companhia e sempre ia mais longe. "Por favor! Não fuja, seu filho está aqui! AQUI!" Falava. De nada adiantava, mãe de Sonho não cessava o canto de chamar e implicava em fugir de mim. Apesar de tudo, tive de desistir. Não conseguia chegar perto da mãe que estava cega de terror. O Tempo não quis me esperar e andava calmamente além de mim, cada vez mais longe. Sabia eu que se não o alcançasse logo não conseguiria cumprir o dia. Deixei pequeno sonho no chão e corri. Antes de desaparecer pelo caminho olhei para trás e vi Sonho parado, sem mexer uma pena. Quando foi possível voltar, corri aos fundos de casa a procura-lo. Estava parado, segurei-o nas mãos e olhei bem. Não mais descansava na mão e me torturava com um olhar de desespero, fome, solidão e tristeza. Pobre criança, não podia comer nem beber. Desabei com o pobre passarinho nas mãos, não teria chances de voar. O sonho de Sonho não poderia se realizar e nada restava fazer a não ser esperar que algo de bom acontecesse. Sonho descansou em um pequeno ninho improvisado por mãos Extraterrestres. Estava ofegante, na tentativa de tomar todo o ar possível. Ele sabia do futuro, sabia o que ia acontecer. Na manhã seguinte ao visitá-lo descobri que Sonho voou. SONHO VOOU! Voou alto, voou pra longe! Voou, para tão longe, que não foi possível levar o corpo junto.